Publicado originalmente em 2014, no saudoso portal Mercado Ético
É no mínimo interessante o papel do imponderável no estabelecer dos nossos caminhos e da realidade que nos cerca. Refletindo sobre a pureza da nascente do rio Tietê, ali cravada na Mata Atlântica, eis que me vem à mente a famosa citação do músico e filósofo austríaco Jean-Jaques Rousseau: “O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe.”
Pois bem, o rio Tietê, cuja nascente fica em Salesópolis, a cerca de 100 quilômetros de São Paulo, nasce naturalmente puro, límpido e frágil. É pouco mais do que uma bica, com três pontos de onde a água brota da terra. Percebe-se apenas o leve chacoalhar das areias no fundo de um amontoado de água. Logo adiante, já se vê um pequeno córrego seguindo seu destino.
O trajeto é longo. Apesar de nascer a uma altitude de 1.030 metros na Serra do Mar, ali pertinho do Atlântico, o rio preferiu cruzar quase que todo o estado de São Paulo para desaguar a 1.100 quilômetros longe dali, no Rio Paraná, que divide São Paulo do Mato Grosso do Sul. Por isso, é apelidado de rio teimoso.
Infelizmente, não é sem dor que o Tietê cumpre a jornada. Sua deterioração começa a poucas dezenas de quilômetros da nascente, em Mogi das Cruzes, onde já recebe esgoto da cidade. Pouco mais a frente está Guarulhos, onde a vida no rio se torna inviável. Mas foi em São Paulo, a cidade seguinte, que o Tietê foi mais brutalmente violentado. Não bastou apenas o despejo de sujeira em suas águas. Tiveram que redesenhar todo o seu trajeto. As curvas que cortavam a cidade se transformaram em uma longa e triste reta emporcalhada.
Mas essas agressões não pararam o Tietê. Ele continuou. Resistente e perseverante, volta a ter condições de vida depois de passar pela cidade de Conchas. No fim, já é novamente um rio limpo.
Tudo isso me remete não só ao pensamento, mas à própria história de Rousseau. Cresceu sem pai nem mãe. Trabalhava para fazer seu nome na música, mas depois de conhecer Denis Diderot e Jean d’Alembert, organizadores da nova Encyclopédie, passou a se interessar mais por filosofia. Suas idéias eram tão controversas para a época, que seus livros foram proibidos na Suíça e na França. Foi condenado à prisão. Viu-se forçado ao exílio, partindo então para uma breve temporada na Inglaterra, até que teve novamente permissão para voltar a Paris, onde morreu aos 66 anos.
Apesar de puros, tanto o Tietê quanto Rousseau enfrentaram problemas logo depois do nascimento. Buscaram um caminho – o rio queria o mar, Rousseau, a música – mas foram sendo moldados por leitos externos ao mesmo tempo que os moldava. Foram rejeitados, porém resistiram e, no fim, mostraram ao mundo sua força e encontraram a redenção.