Entrevista publicada originalmente no site Curso D’Água
A situação é preocupante. Se a falta de água tem castigado o Sudeste do Brasil, especialmente São Paulo, o maior estado do país, a região Sul, com destaque para o Rio Grande do Sul, vem sofrendo com enchentes catastróficas. Também é com estarrecimento que recebemos notícias como a de que o rio São Francisco não chega mais ao mar, ou a de que a pororoca no rio Araguari, no Amapá, já não ocorre mais. Como diria Caetano, “alguma coisa está fora da ordem”.
Para entender o que está acontecendo, o Curso d’Água conversou com Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da Fundação SOS Mata Atlântica. Ela aponta os motivos que levaram o país a enfrentar essa grave crise de recursos hídricos, mas também – e mais importante – passa uma mensagem de esperança. “A situação tem jeito, mas as pessoas não podem perder a capacidade de se indignarem”, enfatiza ela.
Confira a entrevista a seguir!
Curso d’Água – A situação da água no Brasil nunca esteve tão preocupante. Se antes a seca era um problema “somente” do sertão nordestino, uma terra esquecida por nossos governantes durante muito tempo, hoje ela ameaça a maior e mais rica cidade do país. No Sul é o contrário. As chuvas têm castigado com intensidade aquela região. O fim da pororoca no rio Araguari, no Amapá, também assusta. O que que está acontecendo?
Malu Ribeiro – Apesar de ser signatário de várias convenções e de se esperar um papel protagonista nas discussões dos desafios do clima, o Brasil infelizmente retrocedeu muito em políticas públicas na área ambiental e de sustentabilidade. Temos legislações extremamente avançadas, como a Lei de Recursos Hídricos, da Constituição de 88. Mas as práticas em relação a essa legislação são absolutamente controversas. O Brasil não se preparou de forma adequada ou preventiva para os desafios do clima. E isso pode ser visto principalmente na falta de planejamento estratégico dos recursos naturais.
É um contraste absurdo a quantidade de água que o país tem e sua disponibilidade. Essa situação que enfrentamos (em São Paulo) não se deve só a uma questão de clima, mas principalmente à poluição e falta de saneamento básico. A Mata Atlântica, por exemplo, presente em 17 capitais de norte a sul do país, tem grandes rios indisponíveis por falta de saneamento. Isso tudo trouxe consequências desastrosas em um momento que o país precisa estar preparado para enfrentar os problemas no clima.
Esse descompasso entre legislações que proíbem, por exemplo, lançar esgoto em qualquer corpo d’água sem tratamento, ou que, de todos os biomas brasileiros, só a Mata Atlântica tem uma lei específica, acabaram sendo agravados com o novo código florestal. Ele desprotegeu as nascentes, várzeas, fundo de vale, gerou mais problemas com manguezais. Tudo isso acaba ampliando os problemas de escassez. Menos florestas, menos infiltração de água no solo. Assim, não há reabastecimento de lençóis freáticos. Minas Gerais, onde estão as principais nascentes, é pela quinta vez consecutiva recordista de desmatamento da Mata Atlântica, seguida pelo Piauí. Enfim, é uma situação que acaba agravando esses problemas do clima para os quais a gente não se preparou.
CDA – Então essa lei dos recursos hídricos é mais uma que não pegou? O que fazer para ir para frente?
MR – Não é verdade que ela não pegou. Ela tem trazido muitos benefícios. Temos mais de 100 comitês de bacias implantados no país. Algumas bacias têm instrumentos de gestão implementadas, como cobrança pelo uso da água, plano de bacia… O que está acontecendo é o enfraquecimento desses comitês por parte dos próprios governos, que não tem na prática de uma cultura de descentralização. Além de recursos hídricos, a lei preconiza uma descentralização nas tomadas de decisão. O primeiro momento em que se provocou um grande esvaziamento na gestão e governança da água foi a transposição do São Francisco. O Comitê da Bacia do Rio São Francisco tinha acabado de ser instalado oficialmente, sendo contra à transposição. Estudos apontavam que a obra seria insustentável para a bacia e que era preciso um plano de revitalização antes de tocar o projeto. O rio já estava agonizando. Mesmo assim, por uma questão político-partidária, a transposição acabou entrando no PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) e sem licenciamento ambiental ou projeto executivo completo. Isso desmobilizou o comitê, provocando um efeito cascata com todos os outros comitês dos outros estados. E a obra deu no que deu: não levou água para onde prometeu, o São Francisco tem suas nascentes sumindo, a situação de saneamento está comprometida e há graves problemas com essa obra, que até precisa ser fiscalizada dentre tantos outros problemas que o Brasil está assistindo.
Isso mostra que não adianta você ter uma legislação que preconiza a participação da sociedade civil se você tem um governo desrespeitando esses sistemas, não olhando para os planos de bacias na hora de tomar decisões de implantação de uma obra.
Por exemplo, a escassez hídrica que estamos enfrentando em São Paulo, não é novidade para ninguém. Nenhum gestor ou especialista pode dizer que não foi prevista essa questão na região sudeste.
CDA – Só quem ficou sem água foi pego de surpresa.
MR – Sim, só quem ficou sim água e que vivia naquela ilusão de que o Brasil tem ambulância ou uma cultura muito ligada à religiosidade. Quando precisa de água, reza para São de Pedro, quando chove muito, reza para Santa Clara. Isso tudo mascarar a situação e faz com que as alternativas técnicas de planejamento sejam engavetadas. Então quando as pessoas falam que o Brasil não tem planejamento, isso não é verdade. Temos pesquisa, planejamento, conhecimento científico. Só que isso tudo não anda junto com a vontade política. A tomada de decisão ainda é político-partidária no país. E não é isso que a lei de recursos hídricos preconiza. Ela preconiza uma descentralização e uma governança participativa. Mas os políticos veem nela uma ameaça, uma espécie de divisão de poder, onde dá-se mais poder para a sociedade do que para os governantes tradicionais.
CDA – Quando falamos em falta d’água sempre vem a questão do desflorestamento. Por que a floresta é tão importante para o recurso hídrico?
MR – Só a floresta tem função e a condição de reabastecer os aquíferos, ou seja os lençóis freáticos que fazem aflorar as nascentes. Não adianta ter grama ou um campo de futebol. Precisa que ter mata nativa para que a água da chuva infiltre, seja fixada no solo e abasteça essas reservas subterrâneas. Sem isso, quando chove você tem um solo em processo de erosão, que retira toda a camada fértil desse solo, assoreia rios e mananciais. E isso contribui para provocar enchentes, que se espalham por lugares que estão sendo usados pelas populações.
Tudo isso vai matando ciclo hidrológico. Só as florestas, junto com os oceanos, têm a capacidade de manter o ciclo hidrológico do jeito que é no planeta desde sua formação. Então a chuva vai cai de forma mais intensa em alguma regiões e não chega em outras, como a gente vem assistindo em São Paulo. E esses processos tendem a ficar cada vez mais intensos na medida em que temos temperaturas com variações extremas: invernos mais secos e verões mais chuvosos. E toda essa chuva intensa, que provoca enchentes nas áreas urbanas, não volta para o subsolo. Ela vai para os rios na forma de água contaminada, cada vez mais poluída.
CDA – Quer dizer, a questão não é água está acabando, porque seu volume no planeta continua mais ou menos o mesmo sua criação. O ponto é a disponibilidade dessa água que não está nos lugres que deveria estar devido a fatores ambientais.
MR – A nossa produção de bens e consumo consome muita água. Essa demanda por água aumentou muito e nossa capacidade de devolvê-la descontaminada para a natureza não caminhou no mesmo ritmo. Quando produzimos alimentos, por exemplo, envenenamos os fios. O Brasil é o maior consumidor de veneno do mundo. E usa dinheiro público para criar fálicas de veneno. Isso caminho na contramão da nossa necessidade.
Sobre esgoto então, nem se fale. Se cada conjunto habitacional viesse com uma estação de tratamento não teríamos esse problema. Porém isso foi esquecido. Tudo isso é resultado não só da falta de vontade política, mas também da falta falsa ideia de que tem água e recurso natural em abundância. O desperdício é a pior de desperdício da água que o país pode cometer. E isso é reflexo de ignorância, porque essa é uma água que você vai precisar.
CDA – Malu, você colocando as coisas dessa forma, chega a dar um desespero. Essa situação tem jeito?
MR – Claro, claro que tem! Em primeiro lugar temos que fazer com que as pessoas se incomodem. As pessoas não podem perder a capacidade de indignação. Não podemos de ficar 20 anos andando na cidade São Paulo, olhando para o rio Tietê e achar que está tudo aquela marginal fétida, morta e poluída. Pior, fazer ciclovia na beira do Pinheiros, sendo que nem dá para respirar direito ali. E ao mesmo tempo, você tem uma valorização imobiliária muito grande nessa região. São contrastes sociais que temos que encarar de frente.
Só vamos sair disso quando assumirmos que a despoluição do Tietê e do Pinheiros não é uma obrigação exclusivamente do governo e da Sabesp, mas sim um desafio dos paulistanos, dos paulistas, dos brasileiros e da nossa indústria. É um problema de estado que precisa ser enfrentado com transparência e seriedade. Temos condições de fazer isso. A SOS Mata Atlântica acredita nisso. Mas esse desafio não vai ser resolvido da noite pro dia. Não adianta dizer que vai resolver isso em dois ou três anos, mas também não podemos conviver com isso para sempre.